sexta-feira, 13 de novembro de 2009

quentura

Alice Braga em "Ensaio sobre a cegueira"




O calor desmedido queimava minha pele

e o suor escorria lentamente encharcando-me a roupa.


Na rua, operários trabalhavam ruidosamente sem parar

e minha cabeça girava como se fosse explodir

como se quisesse saltar dali pra um lugar bem longe.


As poucos o cansaço tomou conta dos meus músculos

sentia-me derreter

sentia-me sem saída

e recorri ao chuveiro

que despejou sobre mim gotas d’água ferventes.


A noite chegou e eu saí

fui para a rua em busca de alívio

andei sem destino

consumida pelo calor e pelo cansaço.


Foi assim, de repente,

que o céu começou a vazar pingos de sanidade

a água molhou cabelos, meu rosto, meu corpo

parei no meio do nada

e me deliciei com cada beijo molhado

enquanto as pessoas corriam apressadas

abrindo desajeitadamente seus guarda-chuvas

eu não desejava fugir!


ergui minha cabeça

libertei um sorriso

entreguei-me

e fiz amor com o vento...



quinta-feira, 1 de outubro de 2009

batom

imagem google




Estava sempre à espera... Sempre pronto para cobri-la. Ora impaciente, sem cerimônias. Ora leve, deslizando lenta e despudoradamente- observando as curvas e imprimindo sua marca. Aos poucos foi se acabando, cada dia mais um pouco, consumido até o fim...






segunda-feira, 14 de setembro de 2009

televisão

foto überfoto




Imperava imponente. Centro de tudo. Dona da casa. Luz própria. Encantamento. Todos os olhos para si. Guardadora de todos os desejos. Senhora de todos os pensamentos. Era alívio. Alimento. Alicerce. Prazer. Até o dia em que alguém puxou a tomada...





quinta-feira, 10 de setembro de 2009

quero o nada

Auguste Rodin



Agora apenas o desânimo

-talvez não o desânimo-

mas o cansaço.

Uma vontade de me enrolar feito serpente

e afundar a cabeça para dentro.

Mergulhar onde ninguém pode chegar.

Estou sempre me explicando,

e procurando explicações.

Sempre pensando,

Sempre atrasada,

Sempre lendo,

Sempre saindo,

Sempre chegando

Sempre- a carona, a comida, os papéis, a faxina, o documento, a resposta, o dinheiro, o compromisso, a reunião, a roupa de cama, os gatos, o sapato, a blusa, o casaco, a sombrinha, as chaves, o relógio, o celular, o roubo, o carro, as contas,a garagem, o prazo, a lâmpada, a pressa, a bronca, a raiva, o grito, o medo, a tristeza, a angústia, a demora, a dúvida!

Sempre, sempre, sempre...

Mas o que desejo não é o nunca .

Desejo silêncio e o nada

Respirar o nada,

Transpirar o nada,

O nada ,

por enquanto...





quarta-feira, 9 de setembro de 2009

o caos ao meu redor

imagem google



eis que abro os olhos e nada vejo além do caos!

partes de mim espalhadas pelo chão e pelo ar...

estou cercada,

procurando reconhecer os pedaços que flutuam ao meu redor.

onde, entre todos esses retalhos estão os meus desejos?

quais são as minhas dores?

que sorriso é o meu?

o que devo recolher ?

e o que libertar, deixar esvanecer?

com calma saio em meu socorro

a fim de encontrar quem eu sou...





segunda-feira, 31 de agosto de 2009

dieta

foto de Alexandre Chang




Quando o médico afirmou

que precisava cortar a massa

passou a usar a faca

para comer o macarrão...





domingo, 23 de agosto de 2009

guarda-chuva





Corpo esguio e elegante. Braços largos, firmes e abertos, demarcando o território por onde ela não passaria. Um dia, uma vértebra partida baixou para sempre os braços. Agora jogado a um canto, a chuva o consumia...





quinta-feira, 20 de agosto de 2009

migalha

foto Loua



Desprendeu-se de todos no exato momento em que o pão foi partido ao meio. Sentiu-se despencar do alto e desejou desesperadamente que pudessem escutá-la. Já dava tudo por perdido quando, ouvindo um bater de asas, sentiu seu pequeno corpo ser suspendido pelo bico. Enfim, ainda pensou, cumpriria seu destino. E soltou um último suspiro...




ciranda

imagem google



"Vem menina,
dê-me agora a sua mão
que a roda gira, não pára
que a vida roda não passa...
Rosa flor que tem espinho
vento leve, passarinho,
na cantiga vem e vão.
É que a luz e que a força
que se escondem na garganta,
correm soltas nesta roda
voltam, giram na ciranda
quando pego sua mão"




terça-feira, 18 de agosto de 2009

vestido

imagem google



Quando a claridade alumiou, piscou as pequenas lantejoulas restantes. Há quanto não via a luz! Mas a breve alegria foi levada pela dor alucinante de sentir seus botões arrancados, um a um. Uma fileira inteira deles. Depois, como se dilacerassem sua alma, sentiu despregar a pequena faixa de renda francesa. Por último a escuridão. E permaneceu para sempre esquecido no fundo do velho baú...





segunda-feira, 17 de agosto de 2009

alma


foto H.C.Bresson


Minh’alma não tem forma

não tem cor

não tem cheiro

e eu não a tenho.

Minh’alma estende-se prazerosa pela minha forma

pela minha cor

pelo meu cheiro

e ela é que é dona de mim...





domingo, 16 de agosto de 2009

lágrima


(imagem Google)

Nasceu assim de improviso, gotejando pelo canto do olho. Cresceu lerda, arrastando-se cristalina pela face quente e foi se desfazer - gota de sal- nos lábios. Não houve tempo para conhecer o motivo de sua existência.




sábado, 15 de agosto de 2009

lâmpada

foto de Ma Jötten



Nasceu para iluminar! Para abrir espaços entre a escuridão, contudo, não estava preparada para velhas instalações. Queimou-se...





quem tem boca...

foto de Flávio Brandão

Gabava-se de ter as escamas mais brilhantes e de possuir nadadeiras muito hábeis. Desafiou o anzol e morreu pela boca...




o livro que não devolverei

(imagem Google)

Ontem a tarde estava linda! Céu azul e limpo. O sol trazia um calorzinho acolhedor. De onde estava podia ver as montanhas do Vale e ouvir os pássaros cantando. Tudo o que via e sentia naquela tarde era de uma beleza triste. E minha cabeça rodava um filme antigo... Eu estava em um cemitério, enterrando alguém que admirava! Sabe uma daquelas pessoas que você tem certeza de que nunca irão embora? E que quando vão, foram cedo demais? Não consegui deixar de pensar no livro emprestado, que ainda estava comigo e das várias vezes que planejamos a devolução. Um livro lindo do Eugênio Barba – intenso e poético! Pensei na faculdade, nos colegas, nos desafios, nas risadas, nas orientações e nas lágrimas durante a apresentação do TCC e nas inúmeras coisas que vivi neste período.

Numa situação assim é inevitável pensar no que deveríamos ter feito, nas pessoas que precisamos reencontrar antes que também resolvam partir, no que ainda é preciso realizar. Pensei naquilo que falarão de mim quando for a minha vez de partir e me dei conta de que ainda tenho muito pra melhorar!

Quando estamos vulneráveis, nos agarramos naquilo que possa nos fortalecer. Nessa situação tão singular, encontrei pessoas queridas. Abracei. Falei do passado. Fiz promessas de manter o contato. A morte escancara a linha tênue da vida. A brevidade do tempo. A efemeridade das coisas. Olhei pro rosto das pessoas, tristes com a despedida e que buscavam na memória histórias de bons momentos - e quantos eram! Percebi que mesmo que nunca mais encontremos algumas pessoas, elas estarão sempre ali, num lugar especial dentro da gente.

A tristeza é um sentimento estranho. Ela dói, mas é calma. Fica ali segurando suas mãos por um longo tempo. Voltei pra casa abraçada com a tristeza, pensando nas lembranças, na saudade e no livro que jamais será devolvido...